quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Moçambique: comentários, lembranças, perspectivas...

-->
 Neste momento já me encontro muito distante das terras moçambicanas e, por isso mesmo, me pareceu mais fácil fazer os comentários que aqui vão registrados. Mais fácil porque, olhar o mundo com a distância necessária para  sobre ele refletir, sem que dele tenhamos nos apartado, nos torna mais sintéticos, mais reflexivos. O cotidiano, na sua simples e pura cotidianeidade, para que possa ser observado, sistematizado e lido tende a se tornar novelesco ou, no jargão acadêmico, fenomenológico, ou, numa outra variante mais antiga, empiricista. Acontece que, como se pode afirmar utilizando-se outro jargão acadêmico, o que sempre se busca é a construção do conceito, é o entendimento do fenomênico e, fiquemos por aqui: o fenômeno, sem a teoria, é vazio de significado.
Assim, tendo tal distanciamento em mente e tendo por objetivo encerrar meus comentários e reflexões sobre mais esta viagem a Moçambique, volto a citar o “noticias” anterior, onde um dos meus mais novos amigos da Beira, o professor Suluda, me disse que os Moçambicanos pensam em uma língua e falam em outra. Tal como naquela ocasião, todo o esforço de compreensão se volta para o desvendamento desse mundo carregado de meios termos, de ambiguidades, de rupturas que procuram rearranjar o mundo das tradições tribais rearranjando o mundo das tradições capitalistas, ocidentais, de fundamento europeu.
É para dar mais um passo nessa perspectiva que relembro mais uma vez o prof. Suluda e o fato de termos (eu e Conceição) ido à festa de aniversário de Kilimani, a capital do distrito da Zambézia (vale lembrar, de imediato, que estávamos na cidade da Beira, capital da província de Sofala).
A princípio, enquanto nos dirigíamos para o local da festa, não sabíamos com clareza o que iríamos festejar. Conversas e mais conversas depois, descobrimos do que se tratava. Imediatamente voltei às tradições com as quais fui educado e que me servem de parâmetro e me fiz a seguinte pergunta sem qualquer resposta imediata: o que será que leva migrantes da província da Zambézia reunirem-se em festa para comemorar os 71 anos de sua capital, quando vivem em outra cidade que, por sua vez, é capital de outra província?
Chegando lá, tornou-se impossível não observar o movimento geral: cada família, com mesas devidamente demarcadas e espalhadas num grande salão, vai chegando com suas panelas, pratos, talheres, copos, bebidas e se cumprimentam efusivamente. Em pouco mais de uma hora o salão se encheu; vinhos, cervejas e refrigerantes foram sendo abertos, alguns discursos foram sendo proferidos (sempre realçando a presença dos “naturais e amigos da Zambézia que aqui trabalham e vivem em paz na cidade da Beira”) e a maravilhosa culinária vai sendo oferecida aos amigos – se entendi direito todos têm acesso às mesa de todos e, por isso mesmo, enquanto alguns se deslocam pelo salão, com um prato nas mãos e se auto servido da culinária disponível, outros se deslocam com travessas e panelas oferecendo as delícias que trouxeram de casa.
Aos poucos a música, que segundo me informaram era originária da Zambézia, vai contagiando as mulheres e elas se dispõem em círculo para dançar. Os homens se achegam em menor número e algumas músicas depois. Parecem mais tímidos... 
A festa toma conta do ambiente. Kilimani aniversaria na cidade da Beira e, como um mantra, a paz é realçada para aqueles que, zambezianos ou amigos da Zambézia (comecei a imaginar que nossa presença naquela festa já nos colocava, perante todos, na condição de amigos daquela província em que nem mesmo chegamos a conhecer), trabalham e vivem na capital da província de Sofala.
O realce me chama a atenção e, se bem compreendo, ao mesmo tempo que recepciona, abraça, aconchega, lembra que zambezianos não são da Beira e ambos os lados reafirmam identidades ancestrais que, ao realçar a paz, definem a assunção da diferença.
E foi em meio àquela alegria toda que passamos horas de verdadeiro deleite para os olhos (as vestes coloridas das mulheres formam um espetáculo à parte), para a gula (lembro-me bem de uma espécie de purê feito à base de feijão, das patas de caranguejo envolvidas em folhas de mandioca, do frango grelhado em leite de coco e de alguns caramujos pequenos que são coletados nos mangues), para os ouvidos (onde a música e o som das falas alegres enchiam o ambiente) e dali voltamos para a pousada trocando impressões sobre o evento, as quais se tornaram o ponto de partida para este texto.
Que elementos conceituais envolvem tal experiência? Para explicá-las volto à fala de Suluda, onde ele realça a diferença entre as línguas com as quais se pensa e a língua com que se fala, e me confronto com as multiplicidades de referências que se articulam em diferentes processos de identificação cultural e política – onde a família, o clã, a tribo, a ancestralidade enfim, definem alianças, compromissos, ajustes de contas, correlações de forças – enquanto a noção de que existe um Estado Nacional denominado Moçambique reúne partidos, ministérios, governos provinciais e municipais e matriciam o formato das relações internas com os demais países e definições do capitalismo global.
É nesse contexto que uma outra variante vai se consolidando: a dimensão do urbano. Que tradição tão forte pode ter uma cidade de 71 anos para reunir seus filhos em outro lugar do país numa festa tão cheia de alegrias (obviamente que este é o olhar daquele que não pertence diretamente ao processo)? Sob os parâmetros com os quais cresci e fui educado, diria que absolutamente nenhum. Mas ali os meus significados parecem ter pouco ou nenhum valor. Trata-se de juntar pessoas sob justificativas e condições identitárias que envolvem o Estado (e suas cidades, províncias, capitais) e as relações étnicas e seus referenciais de solidariedade, resistência, familiaridade que se expressam na música, na dança, na culinária, na língua (das conversas e não dos discursos).
Alguns dias depois, conversando e discutindo projetos de pesquisa com Raimundo Mulhaisse  (no momento responsável por um dos centros de pesquisa pertencentes à Universidade Pedagógica) um tema veio à baila e me obrigou a retomar toda a reflexão: tratamos do movimento geral que, iniciado com a independência, vai definindo a dinâmica vivida, por tantos e tão indefinidos moçambicanos, entre as aldeias e as cidades.
Samora Machel, em busca da construção de uma política pública capaz de atingir a parcela de pessoas que viviam em aldeias espalhadas, distantes uma das outras e relativamente pequenas, estimula a formação de aldeias comunais e o desenvolvimento da urbanização. Acontece que tal processo, com a guerra, juntou pessoas mas não uniu recursos. Mais que isso, desagregou relações que no espalhamento territorial das aldeias eram cotidianas, mas na reunião  “comunal” reduziram o poder das mulheres, tirando-lhes o controle da cozinha e da machamba (roçado) e, com isso, redefiniram pactos societários milenarmente construídos.
Com o fim da guerra, parcelas dessas populações voltam para a beira dos rios, mas, agora, como produtores de mercadorias (como os produtores de carvão e de blocos de construção), provocando a aceleração da destruição da mata e o assoreamento dos rios.
Enquanto Raimundo Mulhaisse me explicava o fenômeno veio-me à memoria o trabalho de meu ex-aluno Canda, quando nos mostrou que, em algumas tribos do sul, os pequenos jovens são levados, no período das férias de verão, para a experiência de se tornarem adultos e, para tanto, além de escutar as histórias da tribo, experimentam relações de superação e solidariedade que devem marcar a vida de um homem digno. Ao final recebem um novo nome, aquele pelo qual deverão responder a partir de agora. Um novo batismo para deixarem de ser crianças. Vale lembrar que, na contramão do processo, o Estado já registrou aquele (agora adulto) jovem com seu nome de criança e, no retorno às aulas, o professor irá chamá-lo pelo nome de infância. Para não voltar a ser criança ele permanece em silêncio..., e está montado o quadro da confusão.
Aldeias comunais, a guerra civil, os ritos de passagem, a escola, as línguas, as migrações, as memórias, os significados: esses são, somente, alguns poucos exemplos da construção do Estado que se materializa nas relações de fundamento tribal que, ao se difundirem enquanto território, redefiniram a noção de pertencimento ou, o que é o mesmo, a geograficidade reconhecida por todos e cada um.
Façamos, agora, uma pequena e mais que parcial lista do que mais me chama a atenção:
·      Cahora Bassa (uma das maiores usinas hidroelétricas da África),
·      a Mozal (indústria de alumínio de capital canadense e, se não me engano, australiano),
·      a presença de chineses que usam a força de trabalho de seus presidiários para disputar o mercado da construção civil,
·      a Vale que tem se tornado uma das maiores empregadoras do país, denunciada sistematicamente pela maneira com que tem tratado os povos que insiste em deslocar ou os problemas ambientais (seja isso o que quer que seja) que vem criando;
·      iniciando nos próximos meses, dentro do projeto “pró-savana”, brasileiros envolvidos com a produção agropecuária do nosso cerrado vão tornar a parte da savana moçambicana um novo território do agro busines e das commodities,
·      sem que possa me esquecer das milhares e milhares de toras de madeira que vi armazenadas em depósitos à beira da estrada que une a capital de Sofala às principais rodovias do país.

E, reunindo os quadros que procurei descrever nos primeiros parágrafos com as imagens construídas por tais empresas ou processos, o que se observa é que os sujeitos envolvidos vão se multiplicando, vão tornando a materialidade Estado/Sociedade uma correlação de forças com ingredientes muito especiais, por vezes incompreensíveis para os moldes do que chamamos de capitalismo mas, mesmo assim, capitalismo.
Relembrando o texto de Ruy Moreira sobre o Movimento Operário e a Questão Cidade/Campo (Vozes, 1985) e das dificuldades de meus alunos em compreenderem a diferença entre subsunção formal e real e o significado de “acumulação primitiva”, tais categorias (e seus conceitos) me vêm em socorro, mas, da mesma maneira que em relação ao Brasil, também para a realidade moçambicana merecerão novos e amplos debates. A paisagem é suficientemente eloquente para não permitir que nos enganemos em fórmulas fáceis. A explicação que aprendi em meus tempos de graduação e que justificavam os dilemas africanos na arbitrariedade das fronteiras traçadas no processo colonial sempre me deixou subjacente a pergunta desconfiada: e se os colonizadores tivessem respeitado a territorialidade tribal? Os problemas seriam menores?
Quais seriam, de fato, os elementos que compõem esse aparente caleidoscópio, onde, a cada giro, um conjunto inesperado de formas enchem de cores e linhas os perplexos olhos infantis?
No último dia, horas antes de me dirigir ao aeroporto, caminhando em Maputo pela 24 de Julho, eu e Conceição fomos nos despedir da cafeteria que preencheu as nossas manhãs. Foi ali que observei, pendurados nas árvores, alguns dos tantos sacos plásticos pretos que sobrevoam pela cidade quando os ventos se tornam mais fortes. Lá estavam eles, em seus variados tamanhos, como flores pretas  que realçam e escondem folhas verdes e galhos acinzentados, lembrando que nas ruas da antiga Lourenço Marques se materializa, agora, a cidade de Maputo, capital de um país livre de Portugal – estranha apologia do capitalismo mercantil e seu cisne morto – e co-partícipe do movimento geral que só podemos chamar de imperialismo.