Neste momento já me encontro muito distante das terras
moçambicanas e, por isso mesmo, me pareceu mais fácil fazer os comentários que aqui
vão registrados. Mais fácil porque, olhar o mundo com a distância necessária
para sobre ele refletir, sem que dele
tenhamos nos apartado, nos torna mais sintéticos, mais reflexivos. O cotidiano,
na sua simples e pura cotidianeidade, para que possa ser observado,
sistematizado e lido tende a se tornar novelesco ou, no jargão acadêmico,
fenomenológico, ou, numa outra variante mais antiga, empiricista. Acontece que,
como se pode afirmar utilizando-se outro jargão acadêmico, o que sempre se
busca é a construção do conceito, é o entendimento do fenomênico e, fiquemos
por aqui: o fenômeno, sem a teoria, é vazio de significado.
Assim, tendo tal distanciamento em mente e tendo por
objetivo encerrar meus comentários e reflexões sobre mais esta viagem a
Moçambique, volto a citar o “noticias” anterior, onde um dos meus mais novos
amigos da Beira, o professor Suluda, me disse que os Moçambicanos pensam em uma
língua e falam em outra. Tal como naquela ocasião, todo o esforço de
compreensão se volta para o desvendamento desse mundo carregado de meios
termos, de ambiguidades, de rupturas que procuram rearranjar o mundo das
tradições tribais rearranjando o mundo das tradições capitalistas, ocidentais,
de fundamento europeu.
É para dar mais um passo nessa perspectiva que relembro mais
uma vez o prof. Suluda e o fato de termos (eu e Conceição) ido à festa de
aniversário de Kilimani, a capital do distrito da Zambézia (vale lembrar, de
imediato, que estávamos na cidade da Beira, capital da província de Sofala).
A princípio, enquanto nos dirigíamos para o local da festa,
não sabíamos com clareza o que iríamos festejar. Conversas e mais conversas
depois, descobrimos do que se tratava. Imediatamente voltei às tradições com as
quais fui educado e que me servem de parâmetro e me fiz a seguinte pergunta sem
qualquer resposta imediata: o que será que leva migrantes da província da
Zambézia reunirem-se em festa para comemorar os 71 anos de sua capital, quando
vivem em outra cidade que, por sua vez, é capital de outra província?
Chegando lá, tornou-se impossível não observar o movimento
geral: cada família, com mesas devidamente demarcadas e espalhadas num grande
salão, vai chegando com suas panelas, pratos, talheres, copos, bebidas e se
cumprimentam efusivamente. Em pouco mais de uma hora o salão se encheu; vinhos,
cervejas e refrigerantes foram sendo abertos, alguns discursos foram sendo
proferidos (sempre realçando a presença dos “naturais e amigos da Zambézia que
aqui trabalham e vivem em paz na cidade da Beira”) e a maravilhosa culinária
vai sendo oferecida aos amigos – se entendi direito todos têm acesso às mesa de
todos e, por isso mesmo, enquanto alguns se deslocam pelo salão, com um prato
nas mãos e se auto servido da culinária disponível, outros se deslocam com
travessas e panelas oferecendo as delícias que trouxeram de casa.
Aos poucos a música, que segundo me informaram era
originária da Zambézia, vai contagiando as mulheres e elas se dispõem em
círculo para dançar. Os homens se achegam em menor número e algumas músicas
depois. Parecem mais tímidos...
A festa toma conta do ambiente. Kilimani aniversaria na
cidade da Beira e, como um mantra, a paz é realçada para aqueles que,
zambezianos ou amigos da Zambézia (comecei a imaginar que nossa presença
naquela festa já nos colocava, perante todos, na condição de amigos daquela
província em que nem mesmo chegamos a conhecer), trabalham e vivem na capital da
província de Sofala.
O realce me chama a atenção e, se bem compreendo, ao mesmo
tempo que recepciona, abraça, aconchega, lembra que zambezianos não são da
Beira e ambos os lados reafirmam identidades ancestrais que, ao realçar a paz,
definem a assunção da diferença.
E foi em meio àquela alegria toda que passamos horas de
verdadeiro deleite para os olhos (as vestes coloridas das mulheres formam um
espetáculo à parte), para a gula (lembro-me bem de uma espécie de purê feito à
base de feijão, das patas de caranguejo envolvidas em folhas de mandioca, do
frango grelhado em leite de coco e de alguns caramujos pequenos que são
coletados nos mangues), para os ouvidos (onde a música e o som das falas
alegres enchiam o ambiente) e dali voltamos para a pousada trocando impressões
sobre o evento, as quais se tornaram o ponto de partida para este texto.
Que elementos conceituais envolvem tal experiência? Para
explicá-las volto à fala de Suluda, onde ele realça a diferença entre as línguas
com as quais se pensa e a língua com que se fala, e me confronto com as
multiplicidades de referências que se articulam em diferentes processos de
identificação cultural e política – onde a família, o clã, a tribo, a ancestralidade
enfim, definem alianças, compromissos, ajustes de contas, correlações de forças
– enquanto a noção de que existe um Estado Nacional denominado Moçambique reúne
partidos, ministérios, governos provinciais e municipais e matriciam o formato
das relações internas com os demais países e definições do capitalismo global.
É nesse contexto que uma outra variante vai se consolidando:
a dimensão do urbano. Que tradição tão forte pode ter uma cidade de 71 anos
para reunir seus filhos em outro lugar do país numa festa tão cheia de alegrias
(obviamente que este é o olhar daquele que não pertence diretamente ao
processo)? Sob os parâmetros com os quais cresci e fui educado, diria que
absolutamente nenhum. Mas ali os meus significados parecem ter pouco ou nenhum
valor. Trata-se de juntar pessoas sob justificativas e condições identitárias
que envolvem o Estado (e suas cidades, províncias, capitais) e as relações
étnicas e seus referenciais de solidariedade, resistência, familiaridade que se
expressam na música, na dança, na culinária, na língua (das conversas e não dos
discursos).
Alguns dias depois, conversando e discutindo projetos de
pesquisa com Raimundo Mulhaisse (no
momento responsável por um dos centros de pesquisa pertencentes à Universidade
Pedagógica) um tema veio à baila e me obrigou a retomar toda a reflexão: tratamos
do movimento geral que, iniciado com a independência, vai definindo a dinâmica vivida,
por tantos e tão indefinidos moçambicanos, entre as aldeias e as cidades.
Samora Machel, em busca da construção de uma política
pública capaz de atingir a parcela de pessoas que viviam em aldeias espalhadas,
distantes uma das outras e relativamente pequenas, estimula a formação de
aldeias comunais e o desenvolvimento da urbanização. Acontece que tal processo,
com a guerra, juntou pessoas mas não uniu recursos. Mais que isso, desagregou
relações que no espalhamento territorial das aldeias eram cotidianas, mas na
reunião “comunal” reduziram o poder das
mulheres, tirando-lhes o controle da cozinha e da machamba (roçado) e, com
isso, redefiniram pactos societários milenarmente construídos.
Com o fim da guerra, parcelas dessas populações voltam para
a beira dos rios, mas, agora, como produtores de mercadorias (como os
produtores de carvão e de blocos de construção), provocando a aceleração da
destruição da mata e o assoreamento dos rios.
Enquanto Raimundo Mulhaisse me explicava o fenômeno veio-me
à memoria o trabalho de meu ex-aluno Canda, quando nos mostrou que, em algumas
tribos do sul, os pequenos jovens são levados, no período das férias de verão, para
a experiência de se tornarem adultos e, para tanto, além de escutar as
histórias da tribo, experimentam relações de superação e solidariedade que
devem marcar a vida de um homem digno. Ao final recebem um novo nome, aquele
pelo qual deverão responder a partir de agora. Um novo batismo para deixarem de
ser crianças. Vale lembrar que, na contramão do processo, o Estado já registrou
aquele (agora adulto) jovem com seu nome de criança e, no retorno às aulas, o
professor irá chamá-lo pelo nome de infância. Para não voltar a ser criança ele
permanece em silêncio..., e está montado o quadro da confusão.
Aldeias comunais, a guerra civil, os ritos de passagem, a
escola, as línguas, as migrações, as memórias, os significados: esses são,
somente, alguns poucos exemplos da construção do Estado que se materializa nas
relações de fundamento tribal que, ao se difundirem enquanto território,
redefiniram a noção de pertencimento ou, o que é o mesmo, a geograficidade
reconhecida por todos e cada um.
Façamos, agora, uma pequena e mais que parcial lista do que mais
me chama a atenção:
·
Cahora Bassa (uma das maiores usinas
hidroelétricas da África),
·
a Mozal (indústria de alumínio de capital canadense
e, se não me engano, australiano),
·
a presença de chineses que usam a força de
trabalho de seus presidiários para disputar o mercado da construção civil,
·
a Vale que tem se tornado uma das maiores
empregadoras do país, denunciada sistematicamente pela maneira com que tem
tratado os povos que insiste em deslocar ou os problemas ambientais (seja isso
o que quer que seja) que vem criando;
·
iniciando nos próximos meses, dentro do projeto
“pró-savana”, brasileiros envolvidos com a produção agropecuária do nosso
cerrado vão tornar a parte da savana moçambicana um novo território do agro
busines e das commodities,
·
sem que possa me esquecer das milhares e
milhares de toras de madeira que vi armazenadas em depósitos à beira da estrada
que une a capital de Sofala às principais rodovias do país.
E, reunindo os quadros que procurei descrever nos primeiros
parágrafos com as imagens construídas por tais empresas ou processos, o que se
observa é que os sujeitos envolvidos vão se multiplicando, vão tornando a
materialidade Estado/Sociedade uma correlação de forças com ingredientes muito
especiais, por vezes incompreensíveis para os moldes do que chamamos de
capitalismo mas, mesmo assim, capitalismo.
Relembrando o texto de Ruy Moreira sobre o Movimento
Operário e a Questão Cidade/Campo (Vozes, 1985) e das dificuldades de meus
alunos em compreenderem a diferença entre subsunção formal e real e o
significado de “acumulação primitiva”, tais categorias (e seus conceitos) me
vêm em socorro, mas, da mesma maneira que em relação ao Brasil, também para a
realidade moçambicana merecerão novos e amplos debates. A paisagem é
suficientemente eloquente para não permitir que nos enganemos em fórmulas
fáceis. A explicação que aprendi em meus tempos de graduação e que justificavam
os dilemas africanos na arbitrariedade das fronteiras traçadas no processo
colonial sempre me deixou subjacente a pergunta desconfiada: e se os
colonizadores tivessem respeitado a territorialidade tribal? Os problemas
seriam menores?
Quais seriam, de fato, os elementos que compõem esse
aparente caleidoscópio, onde, a cada giro, um conjunto inesperado de formas enchem
de cores e linhas os perplexos olhos infantis?
No último dia, horas antes de me dirigir ao aeroporto,
caminhando em Maputo pela 24 de Julho, eu e Conceição fomos nos despedir da
cafeteria que preencheu as nossas manhãs. Foi ali que observei, pendurados nas
árvores, alguns dos tantos sacos plásticos pretos que sobrevoam pela cidade
quando os ventos se tornam mais fortes. Lá estavam eles, em seus variados
tamanhos, como flores pretas que realçam
e escondem folhas verdes e galhos acinzentados, lembrando que nas ruas da antiga
Lourenço Marques se materializa, agora, a cidade de Maputo, capital de um país
livre de Portugal – estranha apologia do capitalismo mercantil e seu cisne
morto – e co-partícipe do movimento geral que só podemos chamar de
imperialismo.