Ensaios sobre a miséria da teoria – 1
Ler atentamente é um exercício necessário ao estudo e é este o esforço que me proponho a desenvolver aqui. Tal exercício tem, antes de tudo, um fundamento de caráter pedagógico e, por isso mesmo, o dedico aos meus alunos (àqueles que já o foram e, quem sabe (?), àqueles que porventura ainda terei o prazer de conhecer).
Para ler Althusser
No chamado “campo marxista” ou, para os não iniciados,
naquele grupo de intelectuais e ativistas políticos que se consideram de
esquerda e, mais que isso, veem no legado da dupla Marx e Engels[1]
uma fonte inesgotável de conhecimento e inspiração – e não se incomodam em
tornar tal postura um verdadeiro “ato público”- encontramos, como em todos os
demais agrupamentos, pessoas muito diferentes e que, na melhor das hipóteses,
possuem graves e profundas divergências entre si. Em poucas palavras: o campo
marxista é, como todos os demais “campos” (religiosos ou não), um agrupamento
de pessoas que busca, num determinado tipo de tradição, algum tipo de
identidade e, diga-se de passagem, tais identidades são extremamente
importantes para se garantir aprioristicamente algum tipo de relação e
realização.
Se considerarmos a importância do legado de Marx e Engels
para as diferentes formas de organização política materializadas a partir da
Primeira Internacional dos Trabalhadores, não teremos nenhum motivo para nos
espantarmos com esse fenômeno. Em alguns momentos tais divergências tornam-se
suficientemente incompreensíveis a ponto de se tornarem alvo dos humoristas (o
grupo inglês Monty Pyton no filme “A vida de Brian” tornou-se um clássico) ou
de textos como de Jean Baudrillard em seu também clássico: Os Partidos
Comunistas. Isso tudo sem levar em consideração o fato de, no interior do
“campo”, alguns grupos denunciarem-se mutuamente como traidores e, quando
alguns deles se reúnem e assumem o poder de Estado, há casos em que acabam se
tornando o anti-exemplo do que se poderia imaginar da prática política das
esquerdas (o campo das esquerdas) e, especialmente, dos marxistas.
Bem... considerando que esses dois primeiros parágrafos não
devem ser mais que uma introdução a uma espécie de resenha, eis-me envolvido,
como membro auto eleito desse chamado “campo marxista”, em mais uma tentativa
de identificar suas mazelas, suas fragilidades, suas dificuldades.
Iniciei este texto tendo em mente algumas observações que, me
parece, devem ser realizadas em relação à edição feita pela Boitempo do
primeiro volume do Capital (obviamente que estou me referindo à obra do Marx). Coisas
que me (obviamente) chamaram a atenção e que em nada se relaciona à obra
propriamente dita.
O melhor começo para meus comentários é, de fato, o texto que
se encontra na “orelha” do livro e que foi assinado por nada menos que
Francisco de Oliveira. É melhor citar primeiro e, depois, comentar:
“LER O CAPITAL
Esse é o título da edição brasileira do célebre texto de Louis
Althusser e Étienne Balibar, com as devidas desculpas pelo plágio proposital,
pois não encontro melhor forma de recomendar este clássico de Marx aos leitores
lusófonos.
Nossa (...)brava Boitempo presta um novo serviço àqueles que necessitam
recorrer ao texto mais completo sobre o capitalismo.
Ela reuniu um time formidável, encabeçado por Jacob Gorender, José
Arthur Giannotti e Louis Althusser...”
Parei aqui, tentando imaginar o que nos queria dizer o grande
Francisco de Oliveira. Pesarosamente e provavelmente, a contribuição de Jabob
Gorender a esta edição d’O Capital deve ter sido uma de seus últimos trabalhos
na direção do aprimoramento do debate no “campo marxista”(Gorender faleceu em
2013), mas a presença do nome de Althusser nessa lista de “encabeçadores” é
algo, de fato, a se estranhar. O pensador francês faleceu em 1990, muito antes
da existência da Boitempo e, igualmente, muito antes de se imaginar a
necessidade dessa nova tradução d’O Capital para o português. Bem... Francisco de Oliveira não nos explica
o porque colocou Althusser encabeçando esse time formidável e, creio, não
acharemos nenhuma explicação para isso nessa edição, a não ser a possibilidade
do autor do “texto de capa” ter sido mau informado.
Na nota da Edição temos uma referência que pode nos ajudar.
Vejamos:
“A Boitempo Editorial agradece ao tradutor (...); aos professores (....)
que se dividiram na leitura dos capítulos; a Francisco de Oliveira, Jacob
Gorender, José Arthur Giannotti e Louis Althusser (por meio de seu espólio),
autores dos textos de capa e de introdução (...)” (pág. 13)
Como se vê, o texto da Editora parece mais claro que o de seu
convidado, aparentemente pouco esclarecido sobre o papel de cada um neste
processo editorial.
De qualquer maneira, todo o equívoco deve chamar a atenção
dos leitores por um simples e interessante detalhe: o que está fazendo Louis
Althusser aqui? Incontáveis foram os comentadores d’O Capital. Para uma edição
brasileira a presença de textos introdutórios de Francisco de Oliveira,
Gorender e Giannotti é, no mínimo, o reconhecimento do legado desses homens ao
pensamento de esquerda no Brasil e, sem dúvida, a mais justa das homenagens que
se lhes poderia ser feita. Mas... Althusser? Ou outro qualquer comentarista
para além dos diversos e diferentes prefácios do próprio Marx e de Engels (que,
como se sabe, foi o organizador dos volumes finais da obra depois da morte de
Marx) parece-me uma escolha que não colabora para o debate. Cada um deles, em
suas diferentes épocas, representaram ou foram porta vozes de grupos que se
advogaram como os mais autênticos marxistas e, assim, só faria sentido se os
principais comentadores preenchessem volumes e volumes muito mais avantajados
que as mais de oitocentas páginas oferecidas pela Boitempo.
De qualquer maneira, creio que vale ir um pouco mais à
frente, deixando de lado este discurso genérico de estranhamento e procurando
identificar o sentido de algumas proposições althusserianas no interior do
esforço da “pequena e brava Boitempo”, como nos avisa Francisco de Oliveira.
Comecemos pelo título: “Advertência
aos Leitores do Livro I d’O Capital” (pág. 39). Que quer nos dizer o
pensador francês? Ora, ele quer nos “advertir”, não quer que leiamos a obra de
Marx sem um preparo prévio, como pode fazê-lo algum leitor inocente, por assim
dizer. Ele quer ser o leitor que antecede a leitura do leitor e, portanto, quer
que, ao ser lido com antecedência, tornar o novo leitor uma reprodução de seus
próprio parâmetros de leitura. Trata-se, portanto, de uma ótima intenção típica
de alguém suficientemente petulante para se achar um leitor mais preparado que
outros leitores ou, o que é mais duvidoso, alguém que imagina que pessoas
completamente despreparadas e por puro acaso se debruçariam e leriam inocentemente
uma obra como O Capital.
Vejamos o primeiro parágrafo:
“O que é O Capital? É a grande obra de Marx, a qual ele dedicou toda a
sua vida desde 1850 e sacrificou, em provações cruéis, a maior parte de sua
existência pessoal e familiar”
Talvez valesse perguntarmos novamente: “O que é O Capital?”
porque, efetivamente, a resposta de Althusser não responde à pergunta.
Aparentemente estamos frente a uma obra resultado do sacrifício pessoal de um
tal Karl Marx. Algo que efetivamente não nos diz se ela é interessante ou não
e, mais que isso, trata as escolhas pessoais feitas pelo autor como se nelas
houvesse argumentos suficientes para sua santificação – considerando,
principalmente, as tais das “provações cruéis”. Fico a imaginar quantos foram
os autores que dedicaram muito mais que suas vidas pessoais e familiares e
tiveram como resultado obras medíocres. Para Althusser, tal como aqueles que se
dedicam ao sacerdócio, Marx sacrificou sua vida pessoal e familiar. Um
comentário para leigos, considerando que Marx, pelos prefácios que escreveu e o
tom de seu texto, teve um grande prazer em fazer as descobertas geniais que fez
e deu sentido à sua obra. Marx, efetivamente, não se entregou às forças
reacionárias para redimir a humanidade de seus pecados ou para, depois de
morto, ressuscitar ao terceiro dia e, até onde se pode perceber, procurou
permanecer o mais distante possível de qualquer tipo de messianismo.
Continuemos:
“Esta é a obra pela qual Marx deve ser julgado. Por ela apenas, não por
suas ‘obras de juventude’ ainda idealistas (...)Não por obras ainda muito
ambíguas, como A Ideologia Alemã ou mesmo os Grundrisse (....)” (pág. 39)
Uma nova pergunta deve ser feita ao texto (já que ao autor
não é mais possível): Marx deve ser ou está sendo julgado? E, na sequência,
aproveitando o parágrafo: será que, efetivamente, seria possível afirmar que,
independentemente da sua intencionalidade, a construção de uma obra como O
Capital não teria de fato se iniciado quando Marx se torna um hegeliano de
esquerda? Ou, será que seria possível a ele se livrar de sua própria vida para
poder refletir sobre a vida?
Observe-se, ainda, que um dilema quase aritmético está
embutido nesse parágrafo: em 1850 Marx tinha somente 32 anos e, considerando
somente os textos mais conhecidos:
·
É neste mesmo ano que publica “A Luta de Classes
na França”;
·
Em 1852 vem ao público o “Dezoito Brumário de
Luís Napoleão”;
·
Em 1857 ele publica os “Grundrisse”;
·
Em 1859 o “Contribuição à Crítica da Economia
Política”;
·
1865 “Salário, Preço e Lucro e, por fim, em
1867, o primeiro volume do Capital.
A cronologia coloca, de forma mais que evidente, o que as
biografia de Marx apontam: pensando em termos das discussões sobre a literatura
econômica existente n’O Capital, os Grundrisse, a Contribuição à Crítica e as
Teorias da Mais Valia (texto elaborado entre 1861 e 1863 e publicado por
Kautsky em 1905) foram verdadeiros e
exaustivos exercícios que resultaram n’O Capital. Fazem, portanto, desse ponto
de vista, elementos fundamentais para a compreensão da obra – desde que não se
objetive julgar o autor, mas compreender o processo de construção de sua
reflexão.
Por fim, a ideia de existir um “jovem Marx” idealista, cuja
obra deve ser vista como de menor importância trata de tentativas de
periodização cuja fragilidade está suficientemente amadurecida na literatura
disponível e de uso comum no chamado “campo marxista”.
Quanto ao texto de Althusser publicado como uma espécie de
apresentação, obviamente ele vai muito além desses primeiros parágrafos. Creio
que o melhor é indicar o já clássico “A Miséria da Teoria” onde o historiador
inglês E. P. Thompson esmiúça o pensamento althusseriano de maneira a não
deixar dúvidas quanto à miserabilidade de seus fundamentos.
Assim, que fiquem esses meus comentários como um registro
daquilo que ele realmente é: um simples estranhamento quanto a uma postura
editorial, o que em nenhum momento coloca em questão a qualidade do trabalho
materializado nessa nova versão da obra de Marx.
A título de bibliografia, vale apontar somente os dois livros
a seguir, sendo que no primeiro está publicado o comentário de Francisco de
Oliveira e o texto de Althusser que comentei e, no segundo, os comentários de
Thompson que, até o momento, não precisam ser revisados:
MARX, K, O Capital,
Livro I, São Paulo, Boitempo
Editorial, 2013
THOMPSON, E. P. A
Miséria da Teoria, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1981.
[1] Vale
lembrar que para alguns marxistas Engels era um positivista e, portanto, a
dupla que estou colocando em evidência também não é uma unanimidade dentro do
“campo” em questão.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEu complementaria esta bibliografia - tomando as dores de Althusser, se assim quiser - com o livro "A favor de Althusser" onde Luiz Eduardo Motta rebate com muita propriedade, uma a uma, as principais infâmias do panfleto escrito por Thompson. Ademais, um grande abraço de um antigo aluno.
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