É importante colocar em evidência esse processo de
transformação da militância de esquerda em funcionários de Estado. Trata-se, de
fato, de algo muito mais complexo que as que geraram o Estado Keynesiano, a
Social Democracia ou as proposições genéricas de socialismo tornaram comuns no
pós guerras do século passado. Trata-se de um fenômeno antevisto pelas facções
de direita da Igreja Católica na Polônia do “Solidariedade” com o único e
radical defeito de, naquela época, a necessidade de se fazer apologia à ruptura
do pacto com o modelo soviético, exacerbar justamente os grupos de extrema
direita.
De qualquer maneira vale realçar que, numa mesma
década (esta que estamos vivendo), o continente americano colocou em posição de
destaque aqueles que representavam os demônios do imaginário de suas elites: um
militante sindical de esquerda no Brasil, um ex guerrilheiro no Uruguai, uma
mulher no Chile, outra no Brasil e outra na Argentina (único país que já havia
experimentado tal processo político), um índio na Bolívia, um negro nos EUA...,
além de ter visto o declínio físico de Fidel sem que conseguisse retomar Cuba e
de viver o cotidiano venezuelano como um ritual de exorcismo que se repete ad nauseam.
Quando pensamos exclusivamente no Brasil – que é o
que, de fato, nos interessa – alguns comentários preliminares se fazem
necessários e buscarão esclarecer certos posicionamentos expressos no texto em
que procurei discutir a relação entre Lula e Maluf.
Um rápido olhar para a História brasileira e veremos
que a relação entre o Estado e os nossos intelectuais carrega séculos de
ambiguidade, onde exclusão e tentativas individuais de cooptação criam uma
associação quase automática entre intelectuais e marginalidade. Claro, isso não
foi o destino de todos (me vem à memoria, nesse momento, a figura de Rui
Barbosa e as maneiras pelas quais conviveu com o poder de Estado), mas os
intelectuais do império e da república que se associaram diretamente ao poder
de Estado foram poucos e, no geral, não se projetaram nem se legitimaram
socialmente.
Quando, de memoria, tento fazer uma lista dos
principais intelectuais brasileiros do século XX figuras como Sérgio Buarque de
Holanda, Caio Prado Jr., Celso Furtado, Paulo Freire, Milton Santos, Florestan
Fernandes, Monteiro Lobato, Oduvaldo Vianna Filho, Chico Buarque de Holanda,
Vinícius de Morais... e a memória transita entre a semana de 22 e os vários
projetos de universidade que se foram construindo naquele século, além da
criação e do desenvolvimento da teledramaturgia, da chamada música popular
brasileira, das pesquisas em física teórica, na arquitetura e, mesmo, na
Geografia.. e tantos outros caminhos mais ou menos sinuosos, o que fica de
certo é o profundo estranhamento da maioria deles com as máquinas de Estado,
principalmente quando nossos governantes se aproximaram e se assumiram no
interior dos diferentes formatos de fascismo que aqui e ali marcaram fortemente
o período.
O que não é difícil é identificarmos que o Brasil é,
para a maioria deles o tema preferido. Mais de 8 milhões de quilômetros
quadrados, num exemplo paradigmático do significado de “unidade do diverso”, marcados
pela fragmentação interna ditada por pequenos grupos de oligarcas (muitos dos
quais se aproximam da máquina de Estado pela via da Guarda Nacional e,
literalmente, com o transcorrer do século criam uma unidade de extrema direita
a partir da associação do sistema banqueiro com o Estado e a gestão de ambos
pelos próprios oligarcas) e pelas tentativas de construção de algum tipo
nacional de resistência (onde Canudos, Ligas Camponesas, Coluna Prestes, MST,
Igrejas, organizações e partidos de esquerda são somente alguns dos exemplos)
não poderiam ser mais que um tema de extremo interesse para todos eles.
A importância dos intelectuais foi percebida – a
genialidade política desse homem é incontestável – por Getúlio Vargas. Cria uma
máquina de Estado associada a um país que ainda não existia. Dois de seus
principais pilares estão no Ministério do Trabalho – com o objetivo de
ministeriar a minoria dos trabalhadores – e o Ministério da Educação – que
ministeriaria a minoria da população em idade escolar. Ambos se voltaram ao
controle das relações capital-trabalho típicas das ordenações urbanas, num país
que possuia mais de 75% de seus habitantes associados à vida no campo e aos
hábitos da ruralidade que, naquela época, ainda mal saía das relações
escravistas.
Lembremos, rapidamente, que é dessa época a criação do
IBGE e, portanto, a institucionalização da construção discursiva sobre o
significado de Brasil.
Getúlio, no entanto, teve de enfrentar o integralismo,
a Coluna Prestes, parte considerável da imprensa carioca e, ao mesmo tempo, viu
florescer em seu projeto um movimento migratório que redefiniu os significados
de cidade e campo como configuração territorial do país e, concomitantemente, o
campo vai se tornando o arquétipo da injustiça social, da seca, das variantes
do cangaço, dos desmandos do coronelato e do lugar perdido do migrante que, em
voz alta, faz apologia ao luar do sertão, mas se garante como trabalhador urbano
na construção civil e, a seguir, nos desdobramentos acelerados da expansão do
parque fabril.
Creio que podemos, assim, eleger Brasilia como o primeiro e efetivo movimento de cooptação da esquerda brasileira no comando de um projeto de Estado. Niemayer, já reconhecido como um grande arquiteto, trazia de negativo em seu currículo certas relações com o Partido Comunista, o isso não foi suficiente para impedí-lo de tornar-se o mais recente criador de uma cidade inteira que tem por objetivo ser, ao mesmo tempo, o monumento e o espaço funcional do Estado. Mais que uma escultura, mais que instalações, forma e objetivo se fundem enquanto cotidianeidade.
Vista de cima se percebe seu formato de avião, valendo
realçar que o palácio presidencial no lugar da cabine do piloto nos faz pensar
que o monumento tem o requinte de fazer apologia ao presidencialismo como forma
de governo, garantir o corpo do avião como o lugar da tripulação e,
estranhamente, coloca os passageiros no interior de suas asas.
Veio mais uma ditadura – agora chamada de “a ditadura
militar” – e a esquerda foi, novamente, colocada no ostracismo. Junto com parte
considerável do mundo, o Brasil vai viver, ao seu jeito, a superação dos
valores sociais do ruralismo em nome da consolidação das relações tipicamente
urbanas. Assim vivemos as nossas pílulas, as nossas mini-saias, os nossos
rock-and-roll, o nosso maio de 68. Os nossos hippies são mais nossos e têm o
sabor da tropicália.
E, para não me alongar mais, vieram os Fernandos (o
Collor e o Henrique), sendo que o primeiro tem, na sua passagem meteórica, a
marca de ter construído o caminho do segundo. E o segundo (ufa, consegui voltar
ao assunto!!!) consolida a ideia de que entre a ditadura e a democracia a
diferença está em retirar a direita e colocar a esquerda na lista dos
funcionários. Assim, num primeiro momento, o ministro intelectual se acerca de
intelectuais, constrói frases com raízes na sociologia para criticar a parte da
esquerda que queria ver enfraquecida e inicia um processo de cooptação que vai
criar os novos comandantes do planejamento, da educação, da gestão de estado do
movimento sindical e assim por diante.
Assim, uma parcela da esquerda, acostumada a fazer
seus discursos por “entre as pregas” também aqui não precisará frequentar os palanques:
vai falar suas verdades como se verdades de estado verdades fossem.
Os exemplos, se aqui eu estivesse com a intenção de
lista-los, nos levariam ao infinito. Ficarei, no entanto, com somente um -
aquele com o qual, de alguma maneira, precisei conviver - : as chamadas
diretrizes curriculares (as quais, dependendo do nível de ensino, denominaram
de parâmetros) e seus desdobramentos, como o novo formato de escolha de livros
didáticos do PNLD.
Procurando uma articulação entre cada um dos passos do
processo, esquematicamente teríamos:
·
a LDB (e a derrota da esquerda militante para o agora funcionário senador
Darcy Ribeiro),
·
os parâmetros curriculares (e o fato de, de dentro das universidades, se
contratarem funcionários que tornariam suas leituras de cultura, escolaridade e
ciência as verdades de Estado que devem ser seguidas pelos intelectuais que habitam
as “asas do avião”),
·
e as escolhas do PNLD, onde leitores privilegiados, igualmente escolhidos
entre os acadêmicos, substituem os professores na escolha dos livros que serão
oferecidos nas escolas, tendo por pressuposto que o profissional que vai
utilizá-lo, mesmo sendo oficialmente formado para o oficio, não possui formação
cultural suficiente para fazer escolhas. Eis que o
carimbo de ter sido escolhido pelo MEC dá ao livro e a seus autores a
legitimidade que antes não possuíam.
É com articulações desse tipo que se percebe o como e
o quando se deu e se dá o movimento de democratização do Brasil. Nada se fez (e
se faz) sem que se desse (e se dê) garantias à direita (para não nos
esquecermos, vale realçar a noção de anistia contra a qual ainda se luta e na
qual igualmente se guardam os mesmos parâmetros) com o acréscimo de que, a
partir da democratização e em nome dela vai se ampliando o espectro de intelectuais
de esquerda que vai colaborar com este movimento geral.
Tudo isso, sem dúvida, merece debates e revisitas, mas
deixemos que essas provocações ainda iniciais façam seu caminho por entre os
gostam do tema e que queiram me alertar para os insustentáveis problemas que
este texto provavelmente possua.
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