terça-feira, 17 de julho de 2012

Uma Esquerda de Funcionários: explicações preliminares (2a. parte)


Nesse final de semana recebi duas observações sobre os textos que tenho publicado neste blog e que me chamaram a atenção: elas me informaram que os textos são demasiadamente complexos e, até mesmo, incompreensíveis.
Fiquei tentando imaginar que razões levariam meus amigos a terem tanta dificuldade em compreender coisas que para mim são tão claras e, considerando as diferentes variáveis colocadas “sobre a mesa”, conclui que o problema está (ou os problemas estão) associado(s) ao fato dos artigos pressuporem nos leitores alguns conhecimentos prévios que, de fato, poucos possuem. São poucos porque a maior parte não pertence à minha geração, ou porque não se dedicaram a refletir junto à tradição marxista o significado do sindicalismo ou, ainda, porque não se dedicaram a desvendar o significado de Brasil... e, a cada instante, novas e mais amplas determinações vão me passando a limpo.
Não há o que lamentar. Trata-se de simples constatações. Há poucos dias, num programa da TV Cultura, tive o prazer de rever Francisco de Oliveira, uma de minhas fontes inesgotáveis de reflexão sobre o Brasil. Fiquei surpreso quando um dos jornalistas pediu-lhe que identificasse as razões para que, na fase atual de nossas reflexões acadêmicas, o Brasil tenha deixado de ser um tema. Fiquei surpreso porque, afinal, a ausência está se tornando tão importante que está se tornando presença. É preciso recolocar o Brasil na pauta (e a constatação de que ele está fora da pauta é um dos movimentos necessários para que se constate que ele já está na pauta – eis minha singela homenagem ao texto “Presença e Ausência de Henry Lefebvre). De qualquer maneira, as novas gerações estão distantes desse debate e as dificuldades na leitura desses textos bem podem ser localizadas (para além das dificuldades daquele que escreve) nessa carência generalizada.
Volta à memoria, ainda, as falas de Ruy Moreira no Encontro da AGB em Porto Alegre, onde ele lamentava que em um encontro de Geógrafos Brasileiros, em pleno ano de eleições presidenciais, o Brasil não era tema explícito na programação.
Agora, quase dois anos depois, durante o seminário em que tive o prazer de participar – ocorrido há poucos meses na PUC-SP, com a centralidade temática nos trabalhos de Ruy Moreira – chegamos a nos questionar se, de fato, o Brasil existe. A pergunta, aparentemente ingênua, carrega consigo algumas outras de profundidade abissal, e a primeira delas deverá buscar respostas nas relações entre a existência do Estado Nacional chamado Brasil e a possível existência de uma formação econômica e social identificada, de forma igualmente genérica, chamada de povo brasileiro.
Bem... deixemos tudo isso para textos que ainda deverão ser escritos. Aqui e agora, constatar a carência já nos basta, mesmo que tenha ficado para trás a resposta dada por Chico de Oliveira, pois, no final das contas, é a pergunta do jornalista que nos interessou aqui.
Estávamos nos referindo, e aqui continuaremos, aos motivos e consequência da transformação de parte considerável da militância da esquerda brasileira em funcionários de confiança na “máquina de Estado”.
Para que possamos compreender a importância do fato temos de retomar algumas leituras do significado de “esquerda” no transcorrer dos anos 60 e 70 no Brasil. Em outras palavras: quem éramos nós nos tempos da ditadura militar?
Trata-se, como sempre acontece nesses casos, de uma só pergunta com infinitas possibilidades de respostas. A expressão “esquerda” é, como todas as expressões importantes, demasiadamente polissêmica. Para evitar respostas demasiadamente simples como “esquerda é o conjunto de indivíduos que possuem ideias menos à direita que aquelas que hegemonizam o governo militar” e, por isso mesmo, deixaríamos de olhar para nós mesmos e nos colocaríamos para ser identificados pelos nossos inimigos (pode parecer estranho, mas naquela época tínhamos inimigos), vou delimitar nossa construção conceitual a alguns pontos básicos onde, creio, caberá parcelas significativas da igrejas – em movimento decrescente; parcela menos significativa do movimento sindical – em movimento crescente; e os diferentes grupamentos – clandestinos ou não – que militavam pela derrubada da ditadura, tendo como referência perspectivas de caráter marxista (latu-sensu) ou anarquista ou, ainda, no campo da social democracia e da chamada teologia da libertação.
O que, no meu entender, une a todos esses grupos no campo da esquerda, não é o fato de serem pessoas desgostosas com o governo militar, mas, muito mais que isso, por se tratar de pessoas que, de uma maneira ou de outra, militavam pela derrubada daquela ditadura e o faziam a partir de ações dirigidas a organizar a sociedade civil – em grupos de diferentes tamanhos, perspectivas, práticas políticas – criando outros mecanismos e perspectivas de poder político, centrados no esvaziamento da legitimidade social daquele governo.
Trata-se, portanto, de pessoas filiadas a diferentes ideologias que, de armas na mão ou legitimados pela condição de serem sacerdotes ou, simplesmente, porque se reconheciam como lideranças políticas em bairros, paróquias, fábricas, plantações, grupos artísticos e, nessa condição, dedicavam-se a minar a capacidade política da chamada “direita”.
Nós, a esquerda, roubávamos bancos, treinávamos para a guerrilha, dirigíamos cultos, distribuíamos hóstias,  compúnhamos e tocávamos músicas, pintávamos quadros, elaborávamos, dirigíamos e apresentávamos peças teatrais. Mais que isso, nos reuníamos nos bairros, nas favelas, nos guetos de toda ordem, além de cochicharmos nos banheiros das fábricas e das escolas ou nas filas dos relógios-ponto, enquanto outros de nós, com cara de estudantes, fazíamos discursos inflamados nas salas de aula denunciando as mazelas dos vestibulares, das misérias urbanas e agrárias ou dos vínculos indecifráveis de alguns professores com a polícia política.
Vale realçar que parte de todos nós estávamos organizados em coletivos clandestinos que definiam os parâmetros e as ações políticas que seriam desenvolvidas, enquanto outros, desconhecendo ou rejeitando tais práticas, não se furtavam em se articular socialmente um busca da construção de um outro Brasil, sem esquecer daqueles que viam nas suas ordens religiosas a maneira pela qual tornariam suas ideias as ideias de um coletivo.
Expressões como Trotskismo, Leninismo, Maoísmo, Teologia da Libertação, Revolução Cubana e tantas outras, se tornaram referência para aqueles que lutavam, uns com os outros, uns contra os outros, todos para hegemonizarem o processo de derrubada da ditadura. As fissuras entre os grupos existiram de fato, mas o certo é que foi essa a esquerda que conseguiu organizar os sindicatos, o movimento estudantil, a construção de novos partidos e tantas outras ações que, somadas ao esgotamento do projeto econômico dos militares e seus intelectuais, derrubaram e deram por encerrada a fase militarizada da violência política interna.
Muitos foram torturados, presos e/ou exilados, mas muitos outros não o foram, e o mais importante é que, de uma maneira ou de outra, a existência dessa esquerda definiu os passos que constituiriam o Brasil que hoje conhecemos.
Mas, o que será que isso significa? O que é o Brasil que hoje conhecemos?
Se não nos esquecermos que a “esquerda” como identidade genérica, é composta de diferentes leituras de mundo e que é dessa diversidade de posições que se constroem diferentes perspectivas, práticas políticas, ordenações éticas e morais e assim por diante, o fim da ditadura permitiu a todas essas leituras que amadurecessem publicamente suas posições. Alguns grupos simplesmente desapareceram (como, no caso, a organização em que militei), outros se consolidaram como partidos políticos, os movimentos pentecostais esvaziaram a esquerda religiosa e, rapidamente, dois fenômenos se agrupam numa única construção: o primeiro pode ser identificado pelo movimento que levou os militantes que se encontram espalhados pelos bairros, pelas paróquias, pelas reuniões de entidades estudantis ou sindicais a serem convocados a participar dos governos de esquerda e a tornarem suas perspectivas em proposições oficiais. Na rabeira desse processo, o sindicalismo se torna, não só juridicamente, mas igualmente como prática política, uma grande estrutura burocrática também associada aos mecanismos de financiamento e direcionamento de Estado.
Num primeiro momento, poder-se-ia imaginar que tudo ocorreu, num único momento, com todos os grupos e pessoas que cabem nesse conceito de esquerda que está aqui sendo utilizado. Seria um engano grave imaginar tal situação. Homens como Fernando Henrique Cardoso vão orquestrar esse movimento de cooptação associando-se àqueles que, de uma maneira ou de outra, consideravam ser uma esquerda legítima, e o mesmo se dará a seguir com os novos prefeitos, governadores e presidentes cujas bases políticas estão associadas diretamente aos seus históricos nessa mesma esquerda.
Cada uma dessas figura assumiu o poder apoiado por diferentes grupamentos esquerda e tem nesses grupos suas bases de apoio mais imediatas. Para pequenas prefeituras, pequenos grupos mais ou menos coesos, para grandes máquinas administrativas, amplas alianças onde, como diriam alguns guerreiros no século XIX – os inimigos de meus inimigos, são meus amigos e, portanto, nada mais simples que visitar amigavelmente a casa de Maluf, aperta-lhe as mãos e afirmar que tudo isso é feito por uma boa causa: colocar no poder da metrópole paulistana outra esquerda que não aquela que  atende pelo nome de PSDB.
Nossos funcionários são melhores funcionários que os funcionários dos outros. Essa é uma premissa que, aqui verdadeira, ali falsa, vai retirando do debate o que ele deveria ter de mais fundamental: o fato de que todos os projetos, de todas as esquerdas, não conseguiram ir muito mais além que ampliar a eficácia do modo de vida contra o qual todas nasceram, cresceram e, finalmente, se subordinaram.
Melancólico? Ainda não... só o segundo passo da discussão.

Um comentário:

  1. Caro, Douglas.

    Primeiro gostaria de agradecer sua disponibilidade de, por meio desse espaço democrático, permitir compartilhar ideias, conhecimentos, posicionamentos.
    Aproveitando então a conversa, e apenas palpitando no assunto, acho que vale sugerir um olhar para o significado de algumas políticas atuais que podem ser muito interessantes em construir um caminho para colocar o Brasil na pauta do Brasil. Estou me referindo ao atual esforço de se resgatar a memória do período da ditadura militar no Brasil.
    Observo que meus alunos na fase escolar do final do Ensino Médio, demonstram uma dificuldade enorme de entender que esse período está muito próximo de nós, aconteceu pouquíssimo tempo antes deles nascerem, seus pais viveram esse período, mas para eles (alunos do ensino médio), este momento poderia ser confundido com alguma coisa entre o período colonial e a primeira república.
    Claro que quando colocados diante do problema, se dão conta do significado que esse isso teve para todos nós, e enfim, apresentam uma curiosidade sedenta, não só em compreender o período em si, mas também em querer entender o porquê de para eles isso parecer tão distante.
    Estou dizendo isso, porque creio que vivemos um período de muitas transformações no Brasil e por isso mesmo, muito propício para colocarmos o Brasil na pauta de discussões.
    Quis com o pequeno exemplo, demonstrar que algumas inversões de valores contribuiram para que esses alunos não tenham, por conta própria se dado conta de coisas tão importantes. Refiro-me ao fato de que se há pouco destaque na imprensa, é porque não é importante, como é o caso do projeto "Memórias Reveladas". No entanto, muitas coisas estão acontecendo e existe uma sociedade carente de "alfinetadas".
    Talvez seja a hora de os intelectuais serem mais participantes politicamente, e reenvidicarem para si o papel que hoje, infelizmente, está na mão da imprensa. Digo isso, apenas para criticar os intelectuais, pois se os jornalistas são as refrências críticas no nosso país, é porque alguma coisa está muito errada.

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