Hoje, sábado, 8 de março de 2014. No Brasil ainda amanhece o
dia, por aqui o sol já mostra que nos aproximamos da hora do almoço.
Seriam simples detalhes se não fosse o fato da distância angular ser, somente,
o registro geométrico das distâncias que me separam de vida cotidiana quase à beira
do Atlântico e este meu trabalho esporádico à beira do Índico.
Já estou por aqui há três dias e, como sempre, cada
movimento nesse ambiente me provoca à reflexão, me obriga a imaginar
significados. Este é um esforço ao qual não me sinto obrigado em minha terra.
Enganosamente, o sentimento de pertença parece nos oferecer quase tudo como se
já justificado. O incômodo de estarmos no lugar outro e, portanto, no lugar do
outro, sendo que, no final das contas, o outro é você, mexe com nossa cômoda
geograficidade, nos obriga a pensar ou, ao que parece, como fazem os turistas,
a se contentar com a perplexidade.
O primeiro fato a me chamar a atenção ocorreu no ônibus que
nos transportava do portão de embarque número 21, do imenso aeroporto de
Johanesburgo, para o avião da South Africa que nos levaria a Maputo. Ali, uma
conversa em decibéis acima do razoável, nos (todos os passageiros no ônibus) obrigava a ouvir os primeiros
contatos entre dois jovens brasileiros e um senhor cuja nacionalidade me
confundiu. Ele falava um português muito arrastado – diferente da sonoridade
comum aos moçambicanos – e afirmava já ter ido ao Brasil por 3 vezes, tendo
conhecido o Rio de Janeiro, a Bahia e São Paulo sendo que tinha se identificado melhor com a cidade de Salvador. O espanto dos jovens foi
evidente e, prontamente, eles se dispuseram a recebê-lo quando voltasse ao Brasil,
sendo que um se declarava residente em São Paulo e outro em Belo Horizonte.
O senhor de fala arrastada sentou-se à minha frente e, a seu lado, um casal já relativamente idoso de alemães (ou, pelo menos, que se
comunicavam entre si nessa língua). A surpresa foi perceber que, tal como em
relação aos jovens brasileiros, o senhor desatou a conversar com o casal a seu
lado e, ao que me pareceu, aqueles senhores de pele muito branca não se
deixaram intimidar pelo negro que (me pareceu) falava a língua alemã com mais
tranquilidade que o português, pois se expressava em decibéis mais adequados a
uma conversa entre poucas pessoas.
Montado o quadro, percebi que o homem de bermuda e chinelo,
sentado ao meu lado, com sotaque do português falado em São Paulo, me pedia a
caneta emprestada: precisa preencher o formulário exigido pela polícia de
fronteira em Moçambique. Contato feito, ele me conta que é pastor e que a
senhora que o acompanhava também o era. A seguir, ao perceber que teria de
registrar o endereço de onde ficaria hospedado e que não o sabia de cor,
imediatamente entrou em contato com o senhor do banco da frente falante de
português arrastado e alemão. Estavam todos juntos: o pastor, a pastora e o
senhor poliglota.
Fiquei em silêncio. Afinal, quem seria eu que não fosse igualmente
um certo tipo de pastor? Usamos livros aparentemente diferentes, é fato, mas o
que se pretende é participar da luta política pela hegemonização de um certo
tipo de vida. Quem seríamos todos nós que não representantes dos antigos sonhos,
construídos pelos europeus e asiáticos, além dos árabes muçulmanos, de
conquistar a África subsaariana? Sonhos
regados a sangue, miséria, escravidão e enganos, mas, igualmente, catalizadores
da construção de uma nova noção de humanidade que, seja ela qual seja, confunde
as centralidades, reposiciona os sujeitos, deixa menos linear e maniqueísta o
significado de civilização.
A chegada a Maputo reposicionou as preocupações. Não me foi
necessário nem mesmo cinco minutos para perceber que ninguém se lembrou de me
pegar no aeroporto e que eu não possuía um metical (moeda local) sequer para
pagar um taxi para o hotel. A solução foi fazer uso da casa de câmbio do
aeroporto e, como sempre acontece nesses lugares, trocar moedas no pior ágio
possível.
Na saída o motorista de um hotel guardou rapidamente a sua
placa e se ofereceu para servir de taxista. 500 meticais, disse-me. Ah! Os
hábitos! tentei entrar no veículo pela porta do motorista. Não me resolve
pensar nisso por toda a viagem e saber que por aqui os carros seguem o padrão inglês, isto é, contrário ao nosso... o movimento é mais que automatizado.
No caminho a conversa se voltou para a guerra e seus
sujeitos. O motorista, ex soldado da guerra civil, afirmava que um dos piores
problemas de Moçambique se relacionava ao fato dos ex combatentes não
conseguirem se ajustar à sociedade em tempos de paz. As escaramuças em
Gorongoza (hoje um parque nacional no centro da província de Sofala), estavam
associadas à necessidade dos homens que “pertenciam” à RENAMO (grupo armado
que, financiado pela Rodésia e África do Sul, combateu a FRELIMO e tem suas
bases no centro norte de Moçambique – hoje é o principal partido de oposição).
De qualquer forma, disse-me o motorista, o parque está sob controle de
americanos e eles farão a guerra parar quando tiverem interesse nisso.
Bem... enquanto procurávamos transpor uma aparentemente
confusa aglomeração de automóveis (digo que é aparente, porque, no final das
contas, consegue-se chegar ao destino sem grandes problemas – considere-se, no
entanto, que tal comportamento dos motoristas, numa cidade como São Paulo,
tenderia a provocar acidentes monstruosos), fomos conversando sobre a posição
da França na República Centro Africana, os problemas no Egito, Ucrânia e Síria
além da inflação na África do Sul. Sem dúvida, um motorista muito bem informado
das notícias do dia.
Ao anoitecer, já no hotel, recebi a visita dos professores
Ombe e Dgedge. Vinham diretamente do seminário para me desejar boas vindas e
informar que o segundo dia de atividades ficaria exclusivamente sob minha
responsabilidade. As minhas atividades daquele dia foram transferidas e
encavaladas com as do dia seguinte. Paciência... a ideia que me dominava
naquele momento era permanecer acordado, pelo menos, até as 10 de noite e,
depois, conseguir dormir até as 7 do dia seguinte. Acontece que isso é uma
operação de auto convencimento sempre muito difícil. Independentemente do
movimento do Sol e dos comandos conscientes, o fato é que, de acordo com os
hábitos, eu teria de dormir às 5 da tarde e acordar às 2 da manhã de acordo com
o horário de Brasília.
Douglas, terça estaremos em Maputo, e a leitura de seu texto, o primeiro desta viagem, faz refletir sobre questões importantes.
ResponderExcluirÉ um estranhamento prévio, tentando juntar informações, conhecimentos, leituras, será uma noite longa esta de domingo para segunda. Partiremos de Dourados 4 da manhã, até lá, muita leitura e projeções.
Um desafio interessante este projeto e as possibilidades que ele proporciona.
Bom... pelo que soube, apesar dos contratempos, vcs já se encontram em terras moçambicanas. Bem vindos. Vale sempre o prazer de compartilhar.
ResponderExcluirAbraços