segunda-feira, 10 de março de 2014

Moçambique 2 - Sexta Feira - o Seminário e as conversas sobre Gorongoza

Para que eu possa comentar o andamento do seminário não poderei seguir, simplesmente, a ordem cronológica dos acontecimentos (ou, como sempre, do que eu percebi deles). Como todos sabem, há uma grande diferença entre viver uma História e contá-la. Não há porque mentir, considerando que o objetivo é, somente, que discurso faça sentido para quem o lê.
Então... vamos seguir, na medida do entendimento, os acontecimentos do dia.
A primeira imagem que me chamou a atenção se apresentou logo à entrada da Universidade. Trata-se de um edifício de quatro ou cinco andares, com corredores superpostos que nos permitem ver o pátio interno do campus, e, à esquerda, as salas (sejam aquelas dirigidas ao uso administrativo ou simplesmente para que se ministre as aulas). Olhando do pátio, se parece com um imenso conjunto de “Ls” superpostos.
Bem... essa imagem eu já conhecia, considerando que já ministrei vários cursos naquelas dependências. O que me chamou a atenção foi um conjunto de mesas, cadeiras, toalhas e uma série de outros equipamentos que indicavam que haviam transformado a entrada principal do edifício, a partir de um de seus estacionamentos, numa área de alimentação. O transcorrer do dia (tanto no intervalo da manhã quanto na hora do almoço) comprovou que tudo aquilo estava ali à serviço do seminário e, portanto, disponível somente àqueles que dele participavam.
Lanchamos bem, almoçamos divinamente, enquanto alguns passantes nos olhavam com alguma curiosidade.
Em meio a sucos, peixes, saladas e peri-peri (pimentas), conversamos sobre tudo um pouco. A guerra na Gorongoza voltou à minha pauta. Os professores com quem conversei me deram mais algumas explicações que, apesar de não se alinharem diretamente com aquelas que, no dia anterior, me foram oferecidas pelo motorista, meus novos informantes me pareceram complementar dados, ampliar as escalas, melhorar o entendimento. A informação mais importante, creio eu, dava conta do seguinte: quando da assinatura do tratado de paz que pôs fim à guerra civil, a FRELIMO assumiu a responsabilidade sobre as forças armadas e a RENAMO, temerosa de ser traída, manteve um contingente clandestino de algo em torno de três mil homens armados. Até o momento, ao que parece, as promessas da RENAMO de que um dia ganhariam as eleições e que aqueles soldados deixariam seus esconderijos nos matos e seriam oficialmente reconhecidos, se tornaram cada vez mais anacrônicas. A FRELIMO continua a ter o controle do país e os soldados estão envelhecendo em meio à clandestinidade. Frente a isso, ao que parece, a guerra em Gorongoza se mostra como um conjunto de escaramuças que procura afirmar a ambos os lados (FRELIMO e RENAMO) que é preciso solucionar o problema desses homens. De qualquer maneira, tais escaramuças trás ao debate publico o fato – que, certamente, todos já sabiam – da RENAMO ter mantido tropas armadas sob seu comando sem respeitar o acordo de paz. Sem novidades, portanto, quando se observa o histórico dos acordos de paz do último século, pois, lembremos, o início da guerra de 1914 está fazendo seu centésimo aniversário e a noção de que existem acordos de paz é, neste caso, paradigmática. De qualquer maneira, ao que parece, nem os partidos, nem os moçambicanos que estão ainda em pleno processo de construção identitária, desejam o retorno da guerra civil.
Quanto ao seminário propriamente dito, vou dedicar poucas palavras pois, creio, tudo o que ali foi discutido será retomado no transcorrer do curso que se inicia hoje, de forma mais pausada e, provavelmente, mais profícua.
Em primeiro lugar gostaria de realçar o fato de que o seminário mostrou, claramente, um acelerado processo de amadurecimentos dos debates relacionados a nossa disciplina. As perguntas (e, principalmente, a maneira como foram elaboradas) que deram o tom do debate foram precisas e, mesmo que envolvessem embates com os quais vivemos no Brasil desde os anos 70 (a crise da Geografia, por exemplo, o seu estatuto de cientificidade), os seminaristas pareciam buscar em nosso campo do conhecimento respostas à relação entre a unidade pressuposta pela existência do Estado-Nação e seus ordenamentos ou disciplinamentos e a fragmentação interna provocada pelo deslocamento forçado das populações a partir das guerras de libertação e da guerra civil.
Por outro lado, no calor dos debates, se falou da necessidade de se pesquisar e construir uma história do pensamento geográfico moçambicano e, portanto, já se aponta para a necessidade de uma auto avaliação.
No período da tarde, um a um, os novos alunos do doutorado apresentaram seus projetos e se viram, creio que pela primeira vez, alvo de uma simples e direta avaliação. Bem... começamos o trabalho. Agora vamos ver se conseguimos construir a disciplina necessária à pesquisa com a qualidade que justifique a existência de um programa como este.
Antes de terminar dois pequenos comentários, sendo que ambos são o resultado de observações vividas ontem pela manhã.
Bem... o contexto é simples: saí do hotel para fazer uma caminhada. O calor das dez horas já mostrava o que seria o transcorrer do dia e, assim, em passo forçado, me desloquei algo em torno de quatro quilómetros (ida e volta), sendo que me dirigi pela 24 de junho (avenida onde se encontra o Hotel), atravessei a Avenida Vladimir Lenine e desci a Avenida Samora Machel (onde se encontra uma imensa estátua do herói moçambicano e, às suas costas, o edifício do conselho municipal), sendo que estas duas (deixei de lado as demais) ligam a parte alta da cidade ao porto, ao mercado, à estação de trem...
No percurso, como sempre acontece, fiquei pensando no papel desses homenageados na História desse país. Que representaram, como foi que catalisaram as palavras de ordem que permitiram, à época, mobilizarem-se na luta anticolonialista? Enquanto andava e meditava, passei por três soldados, armados de submetraladoras e, ao que me pareceu, vigiando a entrada de um prédio público.
Ao chegar ao final da Samora Machel, encontrei um de meus cafés favoritos e lá me sentei, repus a água perdida e comecei meu caminho de volta. Agora seriam só subidas...

Na volta me encontrei com os soldados e o estranho foi que um deles se dirigiu a mim pedindo dinheiro para matar a sede. Afirmando que não poderia ajudá-lo, que só havia saído para andar e que não tinha dinheiro comigo, vi que ele sorriu meio decepcionado. Continuei minha subida, um pouco bravo pelo fato de ser absolutamente constrangedor um soldado ostensivamente armado pedir dinheiro a um estrangeiro (no mínimo, relativamente branco) e enquanto pensava sobre isso, já de volta à 24 de junho, me deparei com um amontoado de carros estacionados na calçada, tão próximos uns dos outros que, a mim e a um grupo de turistas, nos obrigaram a caminhar pela pista de rolamento. Aí, uma senhora do grupo de turistas, muito branca e com sotaque francês, olhou para a placa da avenida que iríamos atravessar: Vladimir Lenine. Ela quase gritou ao pronunciar o nome de Lenin e, com surpresa e desdenhosamente, desatou a rir como se estivesse julgando os moçambicanos um amontoado de tolos. As duas cenas se atropelaram. Aquela senhora desrespeitosa parecia desconhecer que ela não passava de uma visita e que as visitas educadas devem, antes, tentar entender seus anfitriões e, se observarem algo sobre o que falar mal, devem aguardar para fazê-lo quando já se encontrarem em suas casa. Bem... concluí recarregando meus preconceitos: o turista é, no geral, uma figura desrespeitosa. Agora, enquanto escrevo, me lembrei que no caminho, dois outros soldados pediam a dois jovens loiros que apresentassem seus documentos. É preciso prestar atenção em ambos os lados dessa tensa relação.

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