Para que eu possa comentar o andamento do seminário não
poderei seguir, simplesmente, a ordem cronológica dos acontecimentos (ou, como
sempre, do que eu percebi deles). Como todos sabem, há uma grande diferença
entre viver uma História e contá-la. Não há porque mentir, considerando que o
objetivo é, somente, que discurso faça sentido para quem o lê.
Então... vamos seguir, na medida do entendimento, os
acontecimentos do dia.
A primeira imagem que me chamou a atenção se apresentou logo
à entrada da Universidade. Trata-se de um edifício de quatro ou cinco andares,
com corredores superpostos que nos permitem ver o pátio interno do campus, e, à
esquerda, as salas (sejam aquelas dirigidas ao uso administrativo ou
simplesmente para que se ministre as aulas). Olhando do pátio, se parece com um
imenso conjunto de “Ls” superpostos.
Bem... essa imagem eu já conhecia, considerando que já
ministrei vários cursos naquelas dependências. O que me chamou a atenção foi um
conjunto de mesas, cadeiras, toalhas e uma série de outros equipamentos que
indicavam que haviam transformado a entrada principal do edifício, a partir de
um de seus estacionamentos, numa área de alimentação. O transcorrer do dia
(tanto no intervalo da manhã quanto na hora do almoço) comprovou que tudo
aquilo estava ali à serviço do seminário e, portanto, disponível somente àqueles
que dele participavam.
Lanchamos bem, almoçamos divinamente, enquanto alguns
passantes nos olhavam com alguma curiosidade.
Em meio a sucos, peixes, saladas e peri-peri (pimentas),
conversamos sobre tudo um pouco. A guerra na Gorongoza voltou à minha pauta. Os
professores com quem conversei me deram mais algumas explicações que, apesar de
não se alinharem diretamente com aquelas que, no dia anterior, me foram
oferecidas pelo motorista, meus novos informantes me pareceram complementar
dados, ampliar as escalas, melhorar o entendimento. A informação mais
importante, creio eu, dava conta do seguinte: quando da assinatura do tratado
de paz que pôs fim à guerra civil, a FRELIMO assumiu a responsabilidade sobre
as forças armadas e a RENAMO, temerosa de ser traída, manteve um contingente
clandestino de algo em torno de três mil homens armados. Até o momento, ao que
parece, as promessas da RENAMO de que um dia ganhariam as eleições e que
aqueles soldados deixariam seus esconderijos nos matos e seriam oficialmente
reconhecidos, se tornaram cada vez mais anacrônicas. A FRELIMO continua a ter o
controle do país e os soldados estão envelhecendo em meio à clandestinidade.
Frente a isso, ao que parece, a guerra em Gorongoza se mostra como um conjunto
de escaramuças que procura afirmar a ambos os lados (FRELIMO e RENAMO) que é
preciso solucionar o problema desses homens. De qualquer maneira, tais
escaramuças trás ao debate publico o fato – que, certamente, todos já sabiam –
da RENAMO ter mantido tropas armadas sob seu comando sem respeitar o acordo de
paz. Sem novidades, portanto, quando se observa o histórico dos acordos de paz
do último século, pois, lembremos, o início da guerra de 1914 está fazendo seu
centésimo aniversário e a noção de que existem acordos de paz é, neste caso,
paradigmática. De qualquer maneira, ao que parece, nem os partidos, nem os
moçambicanos que estão ainda em pleno processo de construção identitária,
desejam o retorno da guerra civil.
Quanto ao seminário propriamente dito, vou dedicar poucas
palavras pois, creio, tudo o que ali foi discutido será retomado no transcorrer
do curso que se inicia hoje, de forma mais pausada e, provavelmente, mais
profícua.
Em primeiro lugar gostaria de realçar o fato de que o
seminário mostrou, claramente, um acelerado processo de amadurecimentos dos
debates relacionados a nossa disciplina. As perguntas (e, principalmente, a
maneira como foram elaboradas) que deram o tom do debate foram precisas e,
mesmo que envolvessem embates com os quais vivemos no Brasil desde os anos 70
(a crise da Geografia, por exemplo, o seu estatuto de cientificidade), os
seminaristas pareciam buscar em nosso campo do conhecimento respostas à relação
entre a unidade pressuposta pela existência do Estado-Nação e seus ordenamentos
ou disciplinamentos e a fragmentação interna provocada pelo deslocamento
forçado das populações a partir das guerras de libertação e da guerra civil.
Por outro lado, no calor dos debates, se falou da
necessidade de se pesquisar e construir uma história do pensamento geográfico
moçambicano e, portanto, já se aponta para a necessidade de uma auto avaliação.
No período da tarde, um a um, os novos alunos do doutorado
apresentaram seus projetos e se viram, creio que pela primeira vez, alvo de uma
simples e direta avaliação. Bem... começamos o trabalho. Agora vamos ver se
conseguimos construir a disciplina necessária à pesquisa com a qualidade que
justifique a existência de um programa como este.
Antes de terminar dois pequenos comentários, sendo que ambos
são o resultado de observações vividas ontem pela manhã.
Bem... o contexto é simples: saí do hotel para fazer uma
caminhada. O calor das dez horas já mostrava o que seria o transcorrer do dia
e, assim, em passo forçado, me desloquei algo em torno de quatro quilómetros
(ida e volta), sendo que me dirigi pela 24 de junho (avenida onde se encontra o
Hotel), atravessei a Avenida Vladimir Lenine e desci a Avenida Samora Machel
(onde se encontra uma imensa estátua do herói moçambicano e, às suas costas, o
edifício do conselho municipal), sendo que estas duas (deixei de lado as
demais) ligam a parte alta da cidade ao porto, ao mercado, à estação de trem...
No percurso, como sempre acontece, fiquei pensando no papel
desses homenageados na História desse país. Que representaram, como foi que
catalisaram as palavras de ordem que permitiram, à época, mobilizarem-se na
luta anticolonialista? Enquanto andava e meditava, passei por três soldados,
armados de submetraladoras e, ao que me pareceu, vigiando a entrada de um
prédio público.
Ao chegar ao final da Samora Machel, encontrei um de meus
cafés favoritos e lá me sentei, repus a água perdida e comecei meu caminho de
volta. Agora seriam só subidas...
Na volta me encontrei com os soldados e o estranho foi que
um deles se dirigiu a mim pedindo dinheiro para matar a sede. Afirmando que não
poderia ajudá-lo, que só havia saído para andar e que não tinha dinheiro comigo,
vi que ele sorriu meio decepcionado. Continuei minha subida, um pouco bravo
pelo fato de ser absolutamente constrangedor um soldado ostensivamente armado
pedir dinheiro a um estrangeiro (no mínimo, relativamente branco) e enquanto
pensava sobre isso, já de volta à 24 de junho, me deparei com um amontoado de
carros estacionados na calçada, tão próximos uns dos outros que, a mim e a um
grupo de turistas, nos obrigaram a caminhar pela pista de rolamento. Aí, uma
senhora do grupo de turistas, muito branca e com sotaque francês, olhou para a
placa da avenida que iríamos atravessar: Vladimir Lenine. Ela quase gritou ao
pronunciar o nome de Lenin e, com surpresa e desdenhosamente, desatou a rir
como se estivesse julgando os moçambicanos um amontoado de tolos. As duas cenas
se atropelaram. Aquela senhora desrespeitosa parecia desconhecer que ela não
passava de uma visita e que as visitas educadas devem, antes, tentar entender
seus anfitriões e, se observarem algo sobre o que falar mal, devem aguardar
para fazê-lo quando já se encontrarem em suas casa. Bem... concluí recarregando
meus preconceitos: o turista é, no geral, uma figura desrespeitosa. Agora,
enquanto escrevo, me lembrei que no caminho, dois outros soldados pediam a dois
jovens loiros que apresentassem seus documentos. É preciso prestar atenção em
ambos os lados dessa tensa relação.
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