quinta-feira, 26 de junho de 2014

A construção e o ensino do discurso geográfico


Ensinar Geografia é, também, ensinar a elaborar
perguntas e respostas que envolvam processos
de localização. Marcado por uma tradição milenar,
o discurso geográfico disponível é a ferramenta
que usamos para preparar e desenvolver nossas
aulas. Com ele ensinamos e com base nele avaliamos
a aprendizagem de nossos alunos.
Dois comentários precisam ser feitos em relação
ao uso do discurso geográfico:
nossas aulas de Geografia devem ser realizadas
tendo como referência conteúdos que se
associem aos fundamentos dessa disciplina, na
medida em que é no discurso geográfico que
encontraremos a maneira pela qual refletimos
sobre a geograficidade do mundo e sem ele essa
maneira de pensar não terá como ser ensinada;
os conteúdos geográficos não podem ser considerados
como objetivos de nossas aulas. Vale
lembrar que tais conteúdos, em razão de novas
situações políticas ou mudanças na dinâmica
econômica ou, mais ainda, pelas novas descobertas
da pesquisa científica, vão paulatinamente
sofrendo mudanças. Assim, se não é possível
uma aula sem conteúdos, é preciso pensar que a
forma como são tratados é que definirá o processo
de aprendizagem de nossos alunos.
Diante de tais comentários, ficam em aberto
algumas perguntas: Então, como é construído o
discurso geográfico? Como sei se determinada maneira
de abordar os fenômenos do mundo está ou
não relacionada à Geografia?
Para que possamos respondê-las, procuraremos
nos concentrar nas principais categorias associadas
a nosso campo de conhecimento e, tendo
discutido cada uma delas, poderemos reconhecer
quais seriam os fundamentos do processo de ensino
e aprendizagem da Geografia.
Vejamos, em primeiro lugar, o significado de
paisagem.
A expressão está diretamente associada à nossa
capacidade de enxergar o mundo tal qual ele se apresenta
à nossa volta. Mas, como sabemos, enxergar
não é suficiente – nem a única maneira de reconhecer
o que acontece em nosso entorno. O mundo, para
além de se apresentar como um conjunto de imagens,
apresenta-se igualmente como um conjunto de
sons, formas, cheiros e gostos, isto é, apropriarmo-
-nos das informações que nos permitem reconhecer
o mundo, fazendo uso de todos os nossos sentidos.
Dessa forma, a ideia original de paisagem –
muito mais voltada às necessidades dos pintores
renascentistas e seus esforços em reproduzir
as formas do mundo da maneira mais próxima
possível do que seus olhos seriam capazes de
observar – foi tomando novas características na
na medida em que se tornou referência básica para
o discurso geográfico. Assim, mesmo que, ainda
hoje, muitos geógrafos conceituem paisagem como
uma relação entre as pessoas e o mundo mediada
somente pelo olhar, já está cada vez mais difícil
contestar que todos os nossos sentidos concorrem
positivamente para tal reconhecimento.
Para que possamos concluir essa primeira
proposição, vamos ter como ponto de partida o
fato de a observação da paisagem ser o primeiro
movimento de um sujeito qualquer quando seu
objetivo é reconhecer o mundo por sua forma. A
paisagem, portanto, é a dimensão da aparência, é
a maneira pela qual nossos sentidos reconhecem
as formas das coisas do mundo e conseguem saber
que algumas delas são maiores, estão mais distantes
e se posicionam à esquerda, à direita, acima
ou abaixo de outras. A paisagem não é uma coisa,
mas a primeira atitude de alguém que quer perceber
o mundo observando a distribuição dos objetos
que o constitui.
A segunda categoria a ser colocada em evidência
é território. O que devemos levar em consideração
é que, quando conseguimos perceber uma
paisagem, nossa reação será identificar os objetos
que a constituem, reconhecendo a ordem com que
se distribuem. À imagem percebida demos o nome
de paisagem e, à medida que reconhecemos a ordem
dessa paisagem, vamos construindo em nossa
cabeça um território.
Vejamos a seguir um exemplo bem comum.
Quando falamos das paisagens e do território
brasileiros, estamos claramente nos referindo, na
primeira parte, à maneira pela qual nossos sentidos
se apropriam das coisas que existem em nosso
país. Já na segunda parte, o que está em jogo é a
ordem que nos permite reconhecer a distribuição
das pessoas, cidades, plantações, relevos e todos
os demais elementos que nos constituem, devidamente
localizados uns em relação aos outros, formando
uma unidade, que é o Brasil.
As discussões aqui colocadas não devem servir
de conteúdos para nossas aulas. O objetivo de ensinar
Geografia não é levar os alunos a ter clareza
sobre o significado de paisagem, região, espaço,
território, lugar e outras referências desse tipo. Até
o fim do Ensino Médio devemos nos ater a conteúdos
que “falem das coisas do mundo”, deixando
que a construção de conceitos seja o resultado
dessa aprendizagem e não seu ponto de partida.
Portanto, devemos considerar que o território
tampouco é uma coisa, mas somente o segundo
passo que realizamos quando, ao nos apropriarmos
de uma paisagem, vamos fazendo o reconhecimento
da ordem que a constitui. Dessa maneira
concluímos que território é a paisagem pensada,
carregada de significados, isto é, enquanto a primeira
é uma dimensão da aparência, a segunda já
é nosso reconhecimento de que todo aparente tem
significados. Se não conseguirmos compreendê-
-los é porque não podemos nos localizar, isto é,
não sabemos onde estamos.
Dia após dia, desde nosso nascimento, vamos
aprendendo a transformar nossas sensações em
coisas pensadas, ordenadas, carregadas de sentido.
É assim que reconhecemos nossas casas e
as pessoas que nelas habitam, da mesma maneira
que, já na vida adulta, poderemos ou não nos
deslocar no interior das cidades, dos campos, das
florestas e desertos de todos os tipos, construindo
maneiras de identificarmos onde estamos, isto é,
de nos localizarmos.
Concluindo o que vimos, nossa geografia se
constitui da relação que, cotidiana e mesmo involuntariamente,
realizamos entre paisagem e território,
e é com ela que construímos nossos sentidos
de localização.
Agora passemos para a terceira categoria: região.
Região é uma expressão latina cujo significado
mais usual está relacionado à ideia de “área
de domínio” (o verbo latino “regere” significa “governar”,
“dominar”, “controlar”), isto é, uma área onde um rei, um
fenômeno e/ou uma situação é dominante (por
exemplo, em expressões como “região costeira” é
evidente o domínio da relação imediata entre terra
e mar, ou “região da Bretanha”, na qual estamos
tentando identificar a área dominada por aquele
povo e, portanto, por seu rei). Se considerarmos
que o reconhecimento de tais domínios é fundamental
para nos localizarmos – sabendo, portanto,
se estamos em nossas terras ou em terras estrangeiras
ou, ainda, se estamos numa cidade ou no
campo, numa área dominada por terremotos ou
por terras relativamente firmes e assim por diante
–, a noção de região possui significativo interesse
para o discurso geográfico.
Acontece que, como vimos, nossa relação com
a percepção e o reconhecimento geográfico do
mundo é um movimento que se faz, primeiramente,
entre paisagem e território. O problema é que
no território estão todas as coisas, pequenas ou
grandes, significativas ou não, e, quando vamos
realizar as tarefas de nosso dia a dia, temos, a cada
instante, de prestar atenção em ordenações territoriais
que não são as mesmas.
Por exemplo, se vivemos em uma cidade, podemos
reconhecer todos os elementos que a compõem,
isto é, suas casas e prédios, ruas e praças,
ônibus e trens, além, obviamente, das pessoas e
do uso que fazem de cada um desses elementos.
Vamos imaginar que, num determinado dia, logo
pela manhã, desejamos localizar determinado
banco, depois iremos à casa de um amigo para, a
seguir, nos dirigirmos à escola onde trabalhamos.
Considerando essa ordem de interesses, a cidade
não poderá ser, a todo instante, observada em seu
todo. Num primeiro momento, somente nos interessarão
as ruas que nos levarão ao banco e, à
medida que dele nos aproximamos, nossas atenções
se voltarão ao reconhecimento de um único
prédio, aquele para o qual nos dirigimos, enquanto
os demais serão meras referências secundárias
nesse processo.
No segundo momento, outras ruas, outros caminhos
e outras construções nos chamarão a atenção
e assim será, sucessivamente, a cada interesse
diferente que tivermos em relação à cidade.
Isso significa que sobre o território da cidade
construímos diferentes domínios à medida que
nossos interesses mudam, o que, em outras palavras,
quer dizer o seguinte: para cada interesse que
nos move a observar as diferentes territorialidades
do mundo, construímos uma região específica.
Ela poderá, dessa forma, ser composta de uma
única área contínua, quando o tema em questão
assim se comportar. A título de exemplo podemos
identificar a região amazônica, onde temos
a presença de uma única e contínua influência: a
de uma floresta equatorial sobre uma grande área
da América do Sul. O mesmo se pode dizer da
expressão “a região da América Latina”, em que
a presença de populações que falam português e
espanhol domina a maior parte dos países ao sul
da fronteira do México com os Estados Unidos.
Por outro lado, uma região pode ter a forma de
uma rede. A expressão “Brasil urbano”, por exemplo,
articula áreas que não são contínuas, mas se
relacionam intimamente entre si, formando uma
unidade diferente do “Brasil agrário”. Trata-se, de
fato, do território brasileiro dominado pelo fenômeno
urbano e, por isso mesmo, de uma região.
Assim, em áreas contínuas ou constituindo redes
de relações, nas quais a continuidade se expressa
em função dos processos que estão sendo
estudados, a região é, de fato, a dimensão territorial
dos processos, motivo pelo qual constitui a
essencialidade dos discursos geográficos.
A abordagem dos fenômenos em rede é uma
característica dos três volumes da obra; consideramos,
para isso, o fato de a maior parte das relações
geográficas contemporâneas realizar-se na forma
de redes.
Os limites das regiões é que nos permitem cartografar
os processos; suas cartografias viabilizam
a reflexão sobre as relações que existem entre a
localização geométrica e os processos que queremos
desvendar.
Assim, em linhas gerais, construímos o discurso
geográfico e é com tal compreensão que poderemos
discutir os mecanismos básicos que o inserem
no processo escolar, isto é, em nosso trabalho

como professores.

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