domingo, 29 de junho de 2014

Interdisciplinaridade na obra

Muitas são as disciplinas que compõem o currículo
da escola média e, nas últimas décadas, muito
se tem discutido sobre o significado de interdisciplinaridade
e das áreas do conhecimento. Trata-se,
como ocorre em quaisquer dos temas associados ao
ensino escolar, de polêmicas que estão muito longe
de terminar.
Há os que consideram que as disciplinas “engessam”
os conteúdos e que o mundo real não é disciplinar;
portanto, qualquer coisa que se ensine pelo
viés das disciplinas induzirá os alunos a erro. Edgar
Morin é um dos autores mais importantes que segue
essa linha de raciocínio e as proposições associadas
à transdisciplinaridade. Para outros, as discussões
que envolvem o currículo do Ensino Médio no Brasil
apontam, como está bem definido pela Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, para a existência das
áreas de conhecimento e, portanto, pelo “disciplinamento”
dos conteúdos em campos epistemológicos
e didáticos distintos. Há, ainda, aqueles que defendem
a existência das disciplinas com base muito
mais em tradições e na inércia delas do que, de fato,
em argumentos. Por fim, temos os que propõem a
interdisciplinaridade como uma boa saída, para que
as disciplinas possam dialogar entre si.
É necessário, assim, que deixemos alguns pontos
bem explicados: você está lendo um manual associado
a um livro didático de Geografia (uma das
disciplinas clássicas da escola básica) e, portanto,
todas as explicações que virão a seguir estão relacionadas
à leitura disciplinar do ensino escolar. Nosso
objetivo é discutir:
o significado das disciplinas (ou, em outras palavras,
“o que disciplinam as disciplinas”);
a Geografia como disciplina escolar (ou, na mesma
linha, “que disciplinamentos oferece nossa
disciplina”);
por que e como as disciplinas devem se associar
(ou “os disciplinamentos da interdisciplinaridade”).
O que disciplinam as disciplinas?
Cada disciplina carrega consigo a tradição de
uma maneira de olhar o mundo. Devemos considerar,
sempre, que todas as disciplinas estudam o
mesmo mundo (isto é, aquele em que vivemos) e
que cada uma delas foi construída durante séculos
e séculos para responder a perguntas específicas,
que estão relacionadas a vivências igualmente específicas.
Assim, se a geometria mede o mundo, o
mundo da geometria é o mesmo do da Geografia, e
é neste mundo que ocorrem os fatos históricos e os
fenômenos estudados pela Física, Química ou Biologia,
e assim por diante. Mesmo quando pensamos
em, por exemplo, Astronomia, devemos considerar
que olhamos para as estrelas como se elas fizessem
parte de nosso mundo. Os antigos babilônios
queriam identificar nos céus o futuro das pessoas,
assim como os pesquisadores contemporâneos querem
identificar como funciona a natureza, isto é, estamos
sempre tentando compreender qual é nossa
relação com todos os elementos da natureza, ou
seja, estamos desvendando nossa maneira de viver.
Acontece que nunca conseguimos desenvolver
um tipo de saber que seja capaz de abranger todas
as nossas necessidades. Até mesmo entre os povos
que vivem nas florestas desenvolvendo relações tipicamente
tribais, os conhecimentos a respeito da
caça, da guerra, da dança, da cura e da culinária (só
para ficarmos em alguns poucos exemplos) nunca
são adquiridos ao mesmo tempo e não pertencem
necessariamente a apenas uma pessoa.
Por outro lado, todos os saberes que conseguimos
adquirir se inter-relacionam, até porque todos
eles tratam do mesmo mundo e são construídos
para sistematizar as experiências da humanidade.
Para entender melhor Geografia, é preciso estudar
Física, Química, Sociologia, Literatura, Música,
Arte e Psicologia (a lista é, como se vê, só um
exemplo possível), mas não podemos confundir
um campo do saber com outro, sob pena de perdermos
de vista o interesse (ou a dúvida) de quem
construiu e necessita de cada um desses saberes.
É fundamental que, por exemplo, nossos médicos
especialistas saibam tudo o que se produziu em relação
a sua especialidade e, ao mesmo tempo, eles
precisam ter maturidade e vivência para entender
que cada parte do corpo humano pertence a um
ser completo, com medos e desejos, dono de uma
leitura pessoal sobre a cultura a que pertence, e assim
por diante. Mas, de nada nos adiantaria ir a um
médico que entende perfeitamente o que estamos
sentindo, mas nada sabe sobre a doença que nos
acomete e como fazer para superá-la e reconquistar
nossa saúde.
Assim, voltamos à pergunta: O que disciplina
cada uma das disciplinas? Ora, elas disciplinam
nossa mente. Elas nos ajudam a construir perguntas
e a buscar respostas para nossas dúvidas levando
em consideração todo o processo de construção de
nossa civilização, todos os saberes que nossos antepassados
construíram – o saber que acabou de ser
produzido já está no passado; portanto, ele pode
ter milhares de anos ou apenas alguns segundos.

2 comentários:

  1. excelente! mais ainda quando vem de um geógrafo! a geografia ao longo de sua história institucional sempre foi uma ciência indisciplinada. nesse sentido, gosto de dizer que a geografia é a menos moderna das ciências (sociais) modernas. em momentos de crise (crítica), somos a vanguarda da mesma, nunca saímos dela. essa é a nossa vantagem e desvantagem. abc!

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  2. A idéia da geografia ser uma ciência indisciplinada, principalmente no que tange ao disciplinarmento iluminista (estou imaginando que é a isso que vc está chamando de ciência moderna), me soa muito simpática, mesmo com todas as tentativas do idealismo alemão ou do funcionalismo francês. Valeria, agora, nos perguntarmos o porquê desse tipo de indisciplinamento disciplinar (argh), não é mesmo?

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