Colocar a escola em
discussão no Manual do
Professor de um livro
didático pode parecer um
exagero. Acontece, no
entanto, que é impossível
compreender o significado
de uma disciplina escolar
fora do contexto onde ela
se realiza de fato,
isto é, no interior da
instituição escolar e a serviço
da existência dela.
Assim, juntamente com mais
de uma dezena de
outras tradições
científicas, a Geografia tem participado
ativamente da constituição
e desenvolvimento da
escola moderna, isto é, daquela que
foi criada
no transcorrer do intenso processo de
urbanização
realizado nos séculos XVII e XVIII,
cujo objetivo
era inserir os migrantes do campo na
vida urbana
– e em suas novas formas de trabalhar –,
bem
como garantir o consumo de objetos
maquinofaturados,
a circulação da moeda, além de fazê-los
constituir família e reconhecer-se como
membros
de uma comunidade muito maior que a
família ou
o clã – nas formas como essas
instituições sociais
se realizavam nesse período –, e como
habitantes
de um país, membros de uma nação e
submetidos
ao poder de um Estado.
Tudo isso pode parecer algo comum a
todos nós,
mas devemos lembrar que os Estados
Nacionais, tal
como os conhecemos, são uma invenção
iniciada
pelos portugueses a partir do século
XII; eles só se
consolidaram como a principal forma de
organização
política a partir do século XVIII. Até
recentemente,
os Estados europeus ainda fizeram
profundas mudanças
em suas fronteiras e, portanto, na
definição
da relação de seus habitantes com seus
países.
Assim, ser alemão, francês ou inglês é
algo relativamente
recente e difícil de ser imaginado
pelos camponeses
do século XVII. Da mesma maneira que o
final
do feudalismo foi marcado pela criação
de padrões de
moeda e de pesos e medidas mais ou
menos comuns –
com o objetivo de viabilizar o mercado
entre os feudos
–, a constituição dos Estados Nacionais
exigia a construção
de identidades ainda difíceis de ser
assimiladas.
A presença da escola foi de fundamental
importância
para que tais identidades se
constituíssem, definindo
uma gramática e um vocabulário únicos
para toda
uma nação, além de criar e difundir uma
história e
uma geografia que permitissem a todos
reconhecer-se
pertencentes a determinado país.
O que tudo isso significa? Por que esse
tipo de
escola foi criada e o que,
efetivamente, ela substituía?
Se nos lembrarmos que todos os povos
conhecidos
criaram os mais diferentes mecanismos
de
educar suas novas gerações, a
existência da escola
se torna relativamente fácil de ser
entendida: de
alguma maneira, e cada povo e cada
época de seu
jeito, faz-se necessário que as novas
gerações participem
de “ritos de passagem” que as façam se
sentir pertencentes às sociedades que
as criam. Na
maior parte da história da humanidade,
tais ritos
se realizaram – e em muitas ainda se
realizam –
pela retirada de jovens e adolescentes
do convívio
familiar e, numa conjunção de ritos,
fábulas e pa-
rábolas, todos devem aprender quais são
os valores
e fundamentos que dão identidade a seu
povo.
As nossas escolas têm, estruturalmente,
a mesma
função. Os saberes da família e dos
grupos de
relacionamento mais imediatos não são
suficientes
para que as novas gerações se sintam
participantes
de referências tão extensas e distantes
como um
país – e para isso as diversas
tradições locais devem
aprender uma única Gramática, uma
História
e uma Geografia – ou a noção de
pertencer à humanidade
– e assim ter de aprender uma
Matemática,
Química, Física e Biologia comum a
todos os
povos, além de uma História e uma
Geografia que
deem sentido a tudo isso.
Assim, diferentemente das relações
sociais nas escalas
de atuação da família e das comunidades
mais
imediatas – em que a localização do
trabalho e dos
percursos mais básicos da sobrevivência
parece suficiente
–, a escola deve cumprir o papel de “mergulhar”
as novas gerações no interior dos
valores e linguagens
da civilização a que pertencem, saindo
dos
limites da casa ou do bairro, para a
escala das nações,
dos países e do planeta como um todo. A
escola é
a condição para fazer esta passagem:
levar as novas
gerações à condição de pertencer, ao
mesmo tempo,
a uma nação e à humanidade, a um país e
ao mundo
e, assim, criar as condições para que a
sociedade, tal
qual hoje a conhecemos, possa continuar
existindo.
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